O conjunto de normas promulgado em outubro de 1988 prevê direitos, trata de princípios e organiza a vida em sociedade, entre outras situações. Também chamado de Lei Maior e de Carta Magna, o texto define não apenas direitos, mas, também, obrigações. “Há 25 anos, a Constituição procura dizer isso a todos nós”, afirma o advogado e especialista em Direito Constitucional, Joel de Araújo. Efetividade é a palavra que ajuda a entender a aplicação prática da lei. Para muitos, não cumprir a Constituição faz dela uma norma vazia. Numa cena de “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, Emanuel, personagem que reencarna Jesus, se dirige à Mãe durante o julgamento das almas que estão para ser condenadas: “Se a senhora continuar intercedendo por tanta gente, o inferno vai parecer uma repartição pública: existe, mas não funciona”.
Joel de Araújo diz que a Constituição está um pouco distante desse paralelo, mas admite que algumas regras são de fato difíceis de encontrar aplicação prática. Nesta entrevista, ele fala da data e do significado do mandamento constitucional.
CS: Passados 25 anos, pode-se dizer que a Constituição não é cumprida?
Joel de Araújo: Infelizmente, sim. Sob muitos aspectos, sobretudo no campo dos direitos sociais, ela não contempla as expectativas dos que mais precisam. A Constituição não é cumprida fundamentalmente por aqueles que a juram quando tomam posse. Ao assumir o cargo, os detentores do poder deveriam ter claro e praticar o mandamento segundo o qual todo o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. Teriam de respeitar princípios como o da impessoalidade e não transformar os governos em cabide de emprego. Teriam de honrar o princípio da moralidade e conduzir suas ações com ética para não serem enquadrados na lei de improbidade administrativa. Teriam, enfim, de lembrar que todos são iguais perante a lei e não formarem castas, grupos privilegiados.
CS: Os governos alegam que é impossível atender as demandas sociais baseados no que a Constituição diz…
Joel de Araújo: Sim, é verdade. As limitações orçamentárias estão entre os argumentos mais ouvidos. Falta dinheiro, faltam recursos humanos, e por aí vai. Acontece que esse é um ônus assumido por quem administra. Ele precisa agir com eficiência e gerenciar os negócios públicos com outra visão. Não por acaso existe a figura do orçamento participativo pelo qual a população é consultada e aponta as prioridades que quer ver atendidas. Na prática, porém, os governantes praticam a autossuficiência. Pensam que sabem o que é melhor, já que para isso foram eleitos. É justamente o contrário. Eles precisam de subsídios para executarem seus programas de gestão. Governar, dizem, é escolher prioridades. Que essa escolha seja, então, melhor orientada para, ao menos, reduzir o nível de sofrimento da população que não tem acesso à saúde, à educação, à segurança, a uma vida digna.
CS: Só os gestores públicos estão sujeitos ao cumprimento da obrigação?
Joel de Araújo: Não, é claro. A Constituição é um guia para todos indistintamente. Todos temos de saber conviver e respeitar as diferenças. Diferenças de raça, de credo, de ideologia, de opção sexual. Todos temos de nos conduzir corretamente. E é isso que a Constituição assinala. Ela não diz apenas “vinde a mim os desamparados, os que não encontram vaga em hospitais, que não conseguem matricular os filhos nas creches, que não têm um transporte digno”. Ela ampara, sim, quem precisa, mas, de maneira até mais contundente eu diria, avisa que todos temos de fazer a nossa parte.
CS: Esse “fazer a parte” envolve a tomada de consciência política?
Joel de Araújo: Sem dúvida. O povo consciente, participativo, pode alcançar seus objetivos mais rapidamente. A própria Constituição, chamada de cidadã, nasceu do clamor popular. Estava dentro da agenda do movimento pela redemocratização. A Lei da Ficha Limpa é outro exemplo. Quantas pessoas aderiram ao projeto até ele ganhar forma e passar a valer na prática? Aqui mesmo em Sorocaba, testemunhamos a luta cívica de uma frente liderada pela ONG Cidadãos em Alerta, que barrou o aumento de salários dos vereadores porque esse aumento era inconstitucional. Os protestos de junho que fizeram a tarifa do transporte ser mantida. Foram demonstrações inequívocas do que pode a pressão popular.
CS: Essa leitura da realidade não seria um tanto quanto pessimista?
Joel de Araújo: Ao contrário; a Constituição pede para que todos não se deixem contaminar pelo ceticismo, pela descrença. Ela está lá para dar tutela, e isso envolve, como eu disse, o fazer dos chamados destinatários da norma. Tanto quanto envolve a obrigação de cada um de agir e colaborar a favor do melhor. Não é uma visão romântica essa, nem ufanista; ela é o recado mais direto que a Constituição poderia transmitir.
Notícia publicada na edição de 13/10/13 do Jornal Cruzeiro do Sul